Entrevista com Yara Castro

 

“Ensinar a se gostar é o grande lance do flamenco”

Com o olhar cheio de sonhos e lembranças, Yara Castro contou um pouco da sua vida em uma entrevista repleta de assédio, encontros e reencontros com amigas bailarinas que não se viam há mais de 20 anos, do antigo Ballet Stagium. A comunicação vai além da palavra – ela dá atenção e emociona-se com todos que a rodeiam naquele momento. Além disso, ela queria conhecer cada nova aluna que faz parte da escola “Espaço Flamenco Yara Castro”. Nem um gato que miava sem parar, passou desapercebido pelo olhar atento da bailaora.
Yara é uma das grandes personalidades flamencas no Brasil, ainda que não aceite tal denominação. É uma dessas mulheres fortes e, ao mesmo tempo, delicadas, responsável pela formação de muitos talentos do baile flamenco brasileiro. Quem a vê dançando ou mesmo dando aulas, não imagina que iniciou no flamenco aos 35 anos. Quando criança estudou ballet clássico e, depois, contemporâneo.
“Sempre dancei com muito complexo, porque sabia que não tinha o tipo físico adequado para aquele tipo de dança. Ensinar a pessoa a se gostar e a gostar dos outros, que é difícil, é o grande lance do flamenco. Os ‘defeitos’ viram virtudes. Ele permite aceitar a velhice , as limitações de cada corpo, valorizar a si mesmo. A beleza se torna algo mais profundo do que a estética física. Às vezes, algumas pessoas acham lindo o flamenco, mas não conseguem suportar a cobrança do ser forte e verdadeiro. Ele te dá muito, mas exige muito também”, explica a bailaora.

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Origem e essência

Laurita Castro, mãe de Yara, é uma das pioneiras da dança flamenca no Brasil, e transmitiu a ela uma carga intensa de cultura, arte e formação musical. “Minha mãe foi e sempre será minha primeira professora – ela me deu toques importantes e muita técnica”, conta. Além da mãe, recebeu a herança cultural da avó. “Laurita me incentivou a vida inteira. Tive apoios financeiros, emocionais, psicológicos, técnicos e andaluzes, enfim a essência da Espanha”, diz orgulhosa.

Yara tem uma filha atualmente com 30 anos, a quem considera uma das únicas pessoas que a conhece profundamente, com todas as suas aflições de mãe-artista, mãe-professora e todas as demais funções de mãe.

Sua formação é resultado de todas as referências trazidas por sua mãe, o marido Fernando de La Rua e o amigo Pepe de Córdoba. “Eu me considero uma pessoa vitoriosa, tenho muitas conquistas que me fazem feliz”, revela.

Fernando de la Rua e Yara Castro

A Fernando, companheiro nesta trajetória, deve a realização profissional, através do seu talento musical e percepção técnica. E a Pepe de Córdoba, o primeiro a acreditar e apoiar o seu talento. “Eu devo muito a Pepe. Ele me incentivou a estudar na Espanha, acreditou em mim e me deu desafios. A primeira vez que me chamou para dançar, eu estava vestida de bata de cola, mantón e tocava castanholas. Ele acreditou em mim e acabei fazendo coisas que achei que não fosse capaz. Era a força que ele havia me dado”, agradece a bailaora.

Esse alicerce resulta numa mulher vitoriosa, com coragem para vencer pré-conceitos e criar sua própria identidade. Yara se diz insegura e medrosa, mas o flamenco lhe exigiu altivez, confiança, segurança e postura. “Como eu não tinha uma postura naturalmente flamenca, tive que criar uma personagem para ser aceita. Ele me fez ser quem eu sou e agradeço. Ele é implacável com a precisão, determinação, força, ritmo e verdade e, conseqüentemente, exigiu de mim como pessoa. Em nenhum momento me arrependo de algo. Tudo o que fazemos com amor e acreditamos, com a bandeira da ética e respeito, mesmo que não traga retorno financeiro imediato, é importante”, afirma.

 

 

Passos em outro continente

Atualmente, Yara vive na Espanha há oito anos. Desde 1991 viajava com o marido e músico Fernando de La Rua para se atualizar e aprofundar a sua arte. Em 2001 resolveram se mudar, mesmo com a insegurança de conseguir trabalhar como artistas brasileiros. “Nossa decisão de morar na Espanha foi muito em função do Fernando. Todas as vezes que viajávamos, ele era convidado para tocar em aulas ou shows. Sempre nos perguntávamos se ia dar certo, porque quando a pessoa é jovem as opções são maiores. Não fomos com 20 anos. Fomos com maturidade e sem deslumbramento”, conta a artista.

A bailaora já havia semeado um trabalho de 10 anos no Brasil, tinha sua própria escola e teria que erguer tudo de novo em outro país. “De 2001 a 2003 eu estava sem dançar e sem dar aula. Soube esperar, nunca fiquei angustiada. Eu sabia que, se tivesse uma oportunidade e abrissem uma portinha para mim, entraria”. Foi quando recebeu, em 2003, um convite para substituir uma professora na escola Centro de Ocio El Horno, em Madri, e não saiu mais.

Hoje, tem turmas fixas e pouco tempo para ir e voltar ao Brasil, olhar de perto sua própria escola. “A gente conseguiu se firmar na Espanha como brasileiros. E isso não foi impedimento, foi um ‘plus’. Eles nos apreciam por termos paciência, didática como professores e sermos passionais como pessoas, além da técnica flamenca adquirida com muito estudo. Essa entrega do brasileiro encanta”, diz.

A realidade desta bailaora é diferente da busca desenfreada do sonho de dançar em uma grande companhia. Yara nunca fez uma audição. Escolheu outro trajeto. Foi para a Espanha com mais de 40 anos de idade, e mantém-se bem longe do ambiente competitivo que existe entre as bailaoras mais novas. “Eu não represento nenhuma ameaça. Como eu sou mais velha, não participo do ‘vestibular’ das audições, dos tablados e das grandes companhias”, conta Yara.

“Tem gente que larga o pai, a mãe, o trabalho, a faculdade, o namorado, um padrão de vida para tentar dançar na Espanha. Essas pessoas entram num mercado muito duro e cruel. Na Espanha tem meninas de 18 anos detonando e dançando de graça só para poder circular. Elas têm formação clássica, outras são de conservatório e tocam castanholas incrivelmente. Essas audições são muito rigorosas. É preciso estar muito bem preparado. Esse tipo de dor e processo eu não sofri. Apenas sofri a dor e a pena de ter ido tão tarde. Dediquei minha vida inteira à dança, o flamenco veio mais tarde, por isso foi uma dor controlável”, lamenta.

A bailaora fomenta o Brasil

Ela dança na abertura e é a anfitriã do espetáculo. A guitarra e o cante são executados por espanhóis, já os bailaores são brasileiros. Mais uma vez convidada para continuar o projeto, abrirá a nova temporada no dia 1º de julho.

A bailaora relembra que no começo tinha receio de dizer que era brasileira. Medo da reação do público. “Agora temos segurança e falamos com orgulho. Temos bons bailaores. É gostoso quando uma pessoa me vê dançar e admira o meu trabalho. O gosto é melhor ainda porque não nasci na Espanha”, se diverte.

Segundo ela, o Brasil tem um bom conceito em relação à cultura. Os elogios ao projeto “Brasil Flamenco” são bem vindos e refletem um reconhecimento e respeito com os artistas brasileiros. “Às vezes pensam que sou espanhola quando danço. Isso quer dizer que está saindo de forma natural. Para nós estrangeiros, o objetivo é parecer que é algo que está dentro da gente. É legal ser elogiado por isso, não pelo passo difícil ou fácil”, conta.

“Flamenco Sin Fronteras” é outro projeto com um grupo de alunos que Yara Castro desenvolveu em Madri, em 2006. Junto com Melody, sua amiga e professora, montam coreografias e levam os alunos para fazerem shows na Espanha. “Damos espaço para nossos alunos neste projeto e estou cada vez mais envolvida. É uma satisfação”, afirma.

Na primeira apresentação do projeto, em 2006, Yara convidou a bailaora brasileira Milene Muñoz, sua ex-aluna. “Eu a apresentei como cartão de visita e uma pessoa muito talentosa e especial. Foi um orgulho fazer este espetáculo num pequeno teatro. Ela veio de Sevilla para apresentar um solo. Era a pessoa mais importante para estar ao meu lado no momento da estréia. É um orgulho apresentar na Espanha quem foram meus alunos”, conta.

A difícil recusa, porém uma linda homenagem

Em 2008, Yara Castro e Fernando de La Rua receberam um convite inesperado. O bailaor Domingo Ortega convidou o casal para fazer parte do grupo dirigido por ele no tablado “Flamenco” de Cristina Hoyos, em Tóquio, no Japão. Fernando iria comandar a música do espetáculo com outro guitarrista e dois cantaores. Yara faria parte do quadro com mais uma bailarina e um bailarino.

Devido a saúde debilitada de sua mãe, Yara não pôde aceitar. “Infelizmente, com muito aperto no coração pela grande oportunidade e reconhecimento profissional que ele nos deu. Este trabalho compreendia os meses de setembro de 2008 até abril de 2009, ensaiando todos os dias e atuando no Japão. Seriam mais de 6 meses afastados do Brasil e da Espanha. Era um período difícil, com os cuidados com a minha mãe e os preparativos do espetáculo que fizemos em sua homenagem ´Recuerdos´”, relata.

Este espetáculo foi muito importante para ela enquanto mãe e filha, para seu pai e todos aqueles que tiveram contato com Laurita Castro. “Não poderia adiar essa pequena demonstração que eu queria deixar registrada pela minha gratidão aos meus pais, que me ajudam até hoje. Neste espetáculo, tive a alegria da carinhosa colaboração de todos alunos, ex-alunos e professores”, recorda.

Para Yara, o convite de Ortega significou o maior presente profissional que jamais pensaria em receber. “O que realmente importa e me dá muita satisfação é saber que o Domingo Ortega acreditou em mim como artista, mesmo não sendo espanhola. Tive uma porta aberta não só como uma boa professora. Ele me acha capaz e com algum valor especial para ter a possibilidade de estar ao lado dele neste trabalho. Esse convite foi a coroação máxima da minha trajetória desde que saímos do Brasil para estudar”, conta a artista.

Ole de verdad

“Ole” é o carimbo do controle de qualidade, o aval, a aceitação, descreve Yara. “Na Espanha ninguém vai te dar um “*ole” porque você fez uma
escobilla bem feita, limpinha, dentro do compasso perfeito. Isso é obrigação. O “ole” vem de algo muito maior, da transmissão de sensações. O
que você consegue comunicar e causar partindo de uma bela execução. Esse é o grande objetivo de um artista flamenco, o “ole de verdad”, quando sai de um cantaor, de um guitarrista ou do público no momento certo. De repente, de um gesto simples, a gente cria uma reação imediata e sai aquele “ole” espontâneo”, explica a artista.

Ela entende que o espanhol valoriza a beleza da comunicação e a capacidade de transmitir. Isto é a arte e o diferencial. “Eu tive que competir de igual para igual com a espanhola, tive que estudar muito para entender esse feeling. O flamenco é uma forma de ser e uma forma de sentir”, resume.

 

A valorização do aluno

Respeitar o aluno é uma questão resolvida para esta artista que ainda tem muito que ensinar, não só passos, mas nas relações humanas. “Eu respeito o talento, o trabalho, o esforço e a dedicação. Como não dar olé para essa gente? É nosso objetivo”, conta.

“Eu acho o máximo encontrar as pessoas que começaram comigo na primeira fila de uma aula. Tenho muito orgulho. Consegui superar a barreira da idade e entender quando o discípulo supera o mestre. Chega um momento que a gente diz, ‘eu não tenho mais nada para te ensinar’. É um grande orgulho quando existe essa superação”.

De forma carinhosa e com amor, Yara confessa que é difícil para o professor ter tal atitude. Segundo ela, a relação com o ego se complica quando se admite que o aluno é bom ou até melhor que o professor. Hoje, com tranqüilidade, ela entra numa sala e vira aluna novamente. “Eu serei aluna eternamente. Nunca vou parar de investir em mim, de deixar de aprender mais e coisas novas. Mesmo que eu não tenha o chip de uma menina de 20 anos”, brinca.

Flamenco artesanal

Questões da modernidade também fazem parte de suas preocupações. “Pertenço a uma geração de bailaores que penou porque não existia internet e vídeo. Ouvíamos discos de vinil importados e eram caríssimos. O acesso era mais difícil”, lembra. “Era uma época muito pura. Montar coreografias exigia muito tempo e dedicação. Íamos pesquisar e observar. Mas isso se perdeu”, lamenta.

Passava dias e horas quebrando a cabeça para montar uma seqüência ou criar uma coreografia. “A gente ia para Espanha, fazia cursos e voltava com um monte de material, mas nenhum pronto. Tinha que juntar tudo para tentar criar algo que tivesse uma identidade própria. Não é estilo, porque estilo a gente não tem, temos identificações. Estilo tem as grandes figuras na Espanha que são nossas referências”.

 

Próximos passos

Sempre que Yara vem ao país tem a agenda lotada de cursos em diversas cidades. Para ela, existe uma grande diferença de nível e expectativas. Apesar desses desafios, procura imprimir um toque pessoal por onde passa. Respeita a linha de trabalho de cada escola e não deixa apenas passos. “Os alunos deveriam ter mais respeito com os professores locais, não só valorizar as coreografias que tem ‘grife’. É legal dar importância para o professor que está ali ao lado o ano inteiro e no dia a dia. Eles investem muito dinheiro para dar boas aulas e formar alunos. Não é legal dar apenas valor às coreografias que vêm da Espanha. Existe um deslumbramento e é importante valorizar os professores que os formam”, desabafa.

Mas Yara não pensa em voltar a morar no Brasil tão cedo. Já construiu os alicerces para a realização dos seus desejos. Tem participado de concertos flamencos, criou vínculos carinhosos com seus alunos e quer aproveitar essa energia para investir nas próprias vontades e realizações. “Tenho muito gás na Espanha, mas com o coração no Brasil, na minha escola que é a dedicação da minha vida”, diz a bailaora.

Ela quer continuar dançando, dando aulas e dirigindo com sua amiga Melody o projeto “Flamenco Sin Fronteras”. Além disso, quer estar perto do seu maior projeto. “Quero crescer ainda mais com a minha escola. Estou muito feliz com a equipe que tenho aqui. A coordenação fica por conta de Beatriz Galvez, que é uma pessoa maravilhosa, minha extensão e minha irmã. Além disso, tenho quatro professores maravilhosos e competentes: Miguel Alonso, Priscila Assuar, Fernando César, Ney El Moro e Mariana Rosito. São meus amigos e ainda tenho muito trabalho com eles”, afirma.

A relação da bailaora com a sua escola é emocional. O espaço era a antiga casa onde morava Laurita Castro. “A essência desta casa é uma marca familiar. A paixão da minha mãe pelo flamenco vem pela minha avó, que transmite até os dias de hoje. Aqui tem esse diferencial de ser um espaço flamenco e sua essência. Todo mundo que entra aqui se sente acolhido”, finaliza.

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