Eliane Carvalho

Eliane Carvalho Zacharias é um dos principais nomes da cena flamenca brasileira. Ela vive no Rio de Janeiro, onde dirige o Stúdio Gesto. Bailaora e coreógrafa, o flamenco e a literatura fizeram Eliane abandonar o sonho da carreira diplomática. Nesta entrevista, Eliane fala de sua trajetória no flamenco, explica processos de ensino e aprendizagem e ainda comenta as nuances entre flamenco e literatura – algo presente em sua metodologia de ensino e em seus espetáculos.

Eliane Carvalho – Espetáculo Mosaico – RJ
Foto: Sergio Caddah

Lunares: Como o flamenco entrou em sua vida?

Eliane Carvalho: Quando tinha 14 anos, fui fazer uma aula de dança afro e estava tendo uma aula de flamenco. Fiz uma aula experimental. E fiquei apaixonada. A turma já havia começado, fiquei um pouco envergonhada mas tomei coragem e fui. E não parei mais, literalmente. Após um ano, quando meu professor Theo Dantes ia viajar para Espanha, por alguns meses, ele e a diretora da academia, Stella dos Guarannys, me convidaram para substituí-lo em uma turma de iniciantes. Fiquei um pouco apreensiva, mas topei o desafio. Decidi fazer aulas com mais professores e, nisso, conheci a professora Vera Alejandra. Ela também foi muito importante na minha trajetória, pois, além de me convidar para fazer parte do seu grupo de dança, me deu a oportunidade de já ter algumas turmas para dar aula sob a sua supervisão, em sua academia.

L: Você já tinha optado viver o flamenco?

 

EC: Naquela época, houve uma montagem do musical Amor Brujo, com direção de Roney Vilela. Fiz a audição, passei e foi uma oportunidade incrível, de vivenciar a experiência de estar em cartaz por meses e ganhar realmente familiaridade com o palco. Ao todo, ficamos quatro meses no Teatro Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, e um mês no antigo Palace em São Paulo. Eu estava no segundo semestre da faculdade de direito e cada vez mais sentia que minha vida ia por outros caminhos. Eu havia optado pela faculdade de direito pois pensava em fazer prova para o Itamaraty, mas o flamenco e Clarice Lispector foram me fazendo chegar mais perto do que eu realmente era e queria.

L: Como foi o seu aprendizado de flamenco?

 

EC: Comecei com o professor Theo Dantes e a professora Vera Alejandra no Rio de Janeiro. Em 1997, a convite da professora La Mora, fiz um aperfeiçoamento em Buenos Aires durante um mês. Dois anos depois, durante uma temporada de três meses em Madrid e Sevilha, tive a oportunidade de fazer aulas com grandes mestres, entre os quais Juana Amaya, Yolanda Heredia, Belém Maya, Belém Fernadez e La Truco. Neste tempo foram vários retornos à Espanha para reciclagem e aprofundamento com estes e outros mestres, como Manuel Liñan, Domingo Ortega, Rafaela Carrasco, La Tina, Pol Vaquero, Inmaculada Ortega, entre outros, alguns dos quais estiveram no Brasil recentemente para cursos e tive a oportunidade de dividir o palco com eles em espetáculos no Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

L: Como você define o flamenco?

 

EC: O flamenco é uma forma de sentir a vida. Não sei que personalidade teria se não dançasse. Comecei a dançar na idade que estamos começando a nos descobrir, e esse processo foi todo junto. Sei que me sinto imensamente feliz por dançar, tanto em cena como nas aulas que dou. Se fosse para definir melhor, prefiro citar a Clarice: “O flamenco é o triunfo mortal de viver o que importa”.

L: Como professora, como é o formar um bailaor(a)?

 

EC: Formar um aluno é sobretudo fazê-lo perceber que o mais importante é o que cada um tem de diferente, colocar isso no baile e sentir profundamente os movimentos, de forma que sejam todos prazerosos e façam parte daquele corpo. A técnica é fundamental para a percepção, mas é preciso ir além dela. É preciso apropriar-se dos passos como seus e, então, preenchê-los com intensidade e singularidade.

L: Como você caracteriza ou define o que é um(a) bom(a) bailaor(a)?

 

EC: É impossível classificar a priori o bom bailaor. Não se trata de balé clássico, com os passos codificados, em que será possível fazer comparações sobre ângulos de pernas e tempos de execução. Ainda no balé clássico é possível identificar a interpretação do artista e diferenciar técnicas muito parecidas. Uma frase que gosto é “só me interessa aquilo que me emociona”. Na vida, em tudo. No flamenco também. Claro que a percepção técnica e estética vão se desenvolvendo com o tempo e vivência. Esta percepção, que vai parecendo com algo que chamamos, no geral, de “gosto”, vai participar do processo que leva a emocionar-me com a dança. Mas esse gosto não é acumulativo, não elimina o mais simples quando aprofundamos em conceitos mais complexos. Ver uma “tia gitana” numa praça em Sevilha, encarcilhada, dançando plena e satisfeita me emociona tanto quanto grandes artistas em teatros, às vezes mais.

Eliane Carvalho no espetáculo do bailarino espanhol Pol Vaquero – RJ
Foto: Sergio Caddah

L: Fale sobre os workshops de imersão flamenca que você ministra. Como é ensinar uma pessoa que nunca teve contato algum com o flamenco? Que resultado você obtém?

EC: O workshop intensivo para quem nunca dançou foi criado para tornar mais prazeroso o início do aprendizado. Em um fim de semana, fazemos o equivalente a um mês de aula, sendo quatro horas em cada dia. Também conto com a presença de música ao vivo, cante e guitarra, para que se perceba a sua importância. Começamos bem do início, com algumas pinceladas rápidas da história do flamenco, seus ritmos principais e vemos alguns trechos de textos teóricos ou poéticos que ajudam a formar uma primeira idéia desta vasta experiência que é o flamenco. A partir daí, rapidinho, para não ficar maçante, começamos com as técnicas mais fundamentais de movimentação, tanto do sapateado, quanto das mãos, braços e vamos compondo até o sentido de corpo. Com pequenos pedaços que vamos ampliando, ao final temos uma pequena coreografia, executada sobre a música ao vivo. É incrível, pois o flamenco assusta pela técnica e vigor, mas quando começamos todos juntos, bem devagar, é possível sentir-se dançando em apenas dois dias. Isso merece uma festa, claro, é assim que terminam os workshops. Na grande maioria dos casos, as pessoas que fazem o workshop ingressam em turmas regulares. Começa aí uma grande aventura.

L: Todos os espetáculos que realiza com seus alunos têm uma ligação muito forte com a literatura. Qual o seu envolvimento com a arte escrita?

 

EC: Sempre gostei muito de literatura. Em paralelo ao processo de descoberta do flamenco, fui também me lançando em leituras que me emocionavam. Naquela época, eu não ia a lugar nenhum sem um livro de Clarice Lispector na bolsa, era como a carteira de identidade. Tinha também os poetas, outras coisas. Acho que as descobertas foram acontecendo ao mesmo tempo. Por isso eu tentava juntar as duas coisas, primeiramente lendo textos de Clarice, João Cabral, Nietzsche, Cecília Meireles, Menotti del Pichia, entre outros. Às vezes, eles falavam explicitamente de dança ou flamenco, outras não, mas conduziam a sensações que me pareciam fundamentais na dança, como a Cecília quando diz “quebra o teu corpo em cavernas / para dentro de ti rugir a força livre do ar…”.

L: Para você qual a conexão entre a literatura e o flamenco?

 

EC: A relação entre a literatura e o flamenco é aquela entre duas artes capazes de expandir a compreensão, a expressão e lançar as pessoas a lugares mais altos da sensação. Esta relação pode ser muito direta, como no caso do livro Poemas Sevillanos de João Cabral, ou em trechos de Romanceiro Gitano do Lorca. Mas em grande parte das vezes a relação é indireta no sentido de seus conteúdos específicos e ganham sentido quando apropriado pelo leitor-espectador com formas artísticas diferentes que podem ressoar próximas de nossa sensibilidade. Um processo que temos feito em nossos espetáculos no Studio Gesto é utilizar um poema como ponto de partida da idéia que conduz o espetáculo, ou mesmo uma coreografia específica. Isto dá ao espetáculo, no sentido dos bailarinos, uma linha de sensação sugerida para conduzir a sua própria sensibilidade, que ainda singular, aumenta suas chances de dar um sentido de corpo. Em nosso último espetáculo, primeiro nasceu o poema Mosaico que o Thales Paradela fez especialmente para ele. Depois, com base no poema nasceu uma linda música do Alan Harbas e só depois veio a coreografia, os figurinos e a iluminação. Tivemos a sensação que a poesia como ponto de partida, ao mesmo tempo que nos lançava em percepções de profunda singularidade, nos dava pontos em comum, e isto realmente facilitou e inspirou o trabalho de todo mundo. Até o público que recebe o poema no início do espetáculo embarca nesta viagem comum, ainda que os destinos sejam muitos.

L: Poderia citar autores e/ou obras e/ou trechos que particularmente influenciaram seu trabalho ao longo dos anos?

 

EC: Vai de Santo Agostinho dizendo “Homem, aprenda a dançar caso contrário os anjos do céu não saberão o que fazer contigo” a Nietzsche dizendo “Só posso acreditar num deus que saiba dançar”. Mas tem alguns trechos que viraram um pouco slogan, no bom sentido, “pegaram” mais facilmente e as pessoas no entorno do trabalho reconhecem mais facilmente. Por exemplo: “Dançar flamenco é o triunfo mortal de viver o que importa…”, da Clarice. Depois de ouvir isto, com certeza a pessoa vai olhar diferente para aquele espelho. Outra dela que eu gosto é “Enquanto o dançarino fala com os pés teimosos, a dançarina percorrerá a aura do próprio corpo com as mãos em ventarola: assim ela se imanta, assim ela se prepara para tornar-se tocável e intocável…”.

L: Em seus espetáculos de final de ano, sua preocupação com a concepção cênica é muito forte, a postura cênica de cada aluno é exigida com determinação. Para você, o que é estar em cena e o que você acredita que seus alunos aprendem com isso?

Aula no Studio Gesto – Copacabana – RJ
Divulgação

EC: A concepção cênica não é uma prisão, mas antes o ponto de partida para o salto da liberdade da interpretação. Falei muito em singularidade, em se apropriar dos bailes, tornar pessoal e isto é realmente importante. O difícil é convergir todas estas singularidades quando se trata de um espetáculo coletivo e que propõe um diálogo com a platéia. Por isto é fundamental a pessoa estar em cena com vigor, fazendo com que aquilo faça sentido primeiro para si e depois para o grupo. Mas se todos disserem uma coisa diferente ao mesmo tempo o púbico não entende, nem o grupo dialoga entre si. Não falo de sincronismo do passo, mas da convergência de intenção. Nisso as poesias nos ajudam em muitos casos. E, claro, tudo isso é muito desafiador para qualquer bailarino, mas sobretudo os amadores. São médicos, professores, advogados e outros profissionais, sendo confrontados com um estágio de exposição muito grande. Provoca insegurança, frio na barriga, mas essas energias, se bem conduzidas, fazem as coisas crescerem de sentido. Não se pode oprimir ninguém com a dança, a idéia é libertar. Mas um pouco de obstinação e desafio fazem dessa liberdade algo ainda mais profundo e denso. O que os alunos dizem espontaneamente é que eles também se transformam neste processo, lidam com sentimentos de uma forma construtiva, e se realizam muitas vezes no palco.

L: E fazer flamenco profissionalmente no Brasil? Fale sobre o seu grupo, o Toca Madera, os sonhos, os projetos e a realidade de um grupo de flamenco profissional produzindo espetáculos no Rio de Janeiro e no Brasil.

 

EC: A experiência no grupo Toca Madera, dirigido por Clara Kutner, é maravilhosa, pois é um grupo formado por bailaores e músicos. Fizemos dois espetáculos, Soleá e 2/Duos, que tiveram muito êxito no Rio de Janeiro. Os espetáculos participaram do circuito SESC de dança, com shows por várias cidades no Estado do Rio de Janeiro. Inclusive, estivemos em Curitiba, durante o Festival de Teatro, em 2003. Os espetáculos foram feitos sem patrocínio e isto dificultou uma maior permanência em cartaz. No momento, buscamos patrocínio para a montagem do próximo espetáculo, que se chamará Poetas. Não tem sido fácil, mas continuamos acreditando.

L: E a Eliane bailaora, você está em permanente evolução, participa constantemente de workshops nacionais e internacionais realizados no Brasil, se aprimora na Espanha com freqüência. Para você, o flamenco deve ser um movimento incessante?

 

EC: Pela sua própria natureza, o flamenco é uma arte em constante evolução. A cada ano que eu viajo para Espanha, percebo transformações. Além disso, o fato de dançarmos sempre com música ao vivo, nos permite experimentar a possibilidade de cada vez sermos diferentes, cada músico, cada bailaor, acrescentando singularidade à interpretação e todos juntos construindo um baile único. Citando João Cabral de Melo Neto, “dançar flamenco é sempre um faz, nunca um fez…”.

L: Como você vivencia a experiência de bailar? Em cena, no palco, há algum momento de absoluta transcendência ou a exigência da técnica – do bailar com precisão – nunca a abandona?

 

EC: A experiência de bailar é pura transcendência, prazer infinito. Mas para atingir esta liberdade, é preciso estar muito segura do ponto de vista técnico, pois senão acontece justamente o contrário e a insegurança dos movimentos faz com que o baile “não aconteça”.

L: Qual a expectativa em participar da Mostra Lunares de Flamenco em Curitiba?

 

EC: Estou muito feliz pelo convite e principalmente com a oportunidade de rever a Fabiola Mann, que foi minha aluna por longos anos durante os quais tive a oportunidade de vê-la desabrochar como bailaora e a Lunares nascer, ensaiando este nascimento nos figurinos dos espetáculos do studio Gesto. Espero que as pessoas curtam também a Aula Especial e, principalmente, o espetáculo que faremos.

 

( Entrevista realizada em dezembro de 2007)

Publicar comentário