Reflexões sobre o ensino do flamenco e consumismo, comercialização e apropriação cultural
Há dois anos participei de uma master class com Torombo Suarez em Campinas. Representou para mim um marco, um divisor de águas, que alargou o meu horizonte em relação a meus ideais, fixou em mim toda a poesia e o arsenal de melodias que estavam armazenadas em meu ser. A música flamenca e todo o investimento que empreguei, durante décadas de estudos, de repente fez todo sentido. Toneladas de emoções, clarões, paixões, frases, harmonias, “ayeos”, respiros e silêncios ancestrais… Torombo Suarez é um ícone, uma lenda viva, um gitano puro sevillano. Portanto, uma referência importantíssima incontestável. Durante todo o curso ele mencionava o flamenco de hoje como “a era shopping center”. E o flamenco parece mesmo estar vivendo essa era. E nem estou me referindo aos acessórios, brincos, peinetas, abanicos, pericones, mantillas, picos, vestidos, zapatitos, florecillas, panuelillos, etc.
No entanto, também vivemos a era do apogeu do baile flamenco. O baile movimenta nosso mundo, promove, produz, gera trabalho, edita e dita. Ele está a frente e nos representa no cenário artístico profissional.
Diante desta realidade, tenho me cobrado e questionado sobre diversos aspectos pedagógicos no ensino do flamenco hoje. E nessa balança existem, de um lado, o “flamenco fast food”, e do outro lado, ainda sem força, a flamencologia, graças a Deus. Penso que é no estudo aprofundado que nós, profissionais da área, devemos investir, para semear boas sementes. Aposto muito na valorização do estudo como um equilíbrio justo e urgente, para que possamos dar aos aficionados, estudantes e público que consome flamenco, o direito de escolher. Tenho me questionado muito sobre “como” se devem transmitir os conhecimentos da música flamenca. Qual caminho seguir? Flamencologia ou flamenco fast food? Um meio termo seria digno, viável, plausível?
É usual atualmente encontrar professores de flamenco que montam estruturas tal como se montam sanduíches de redes de fast food. Recitam enunciados, nomeiam palos e estilos mas não conhecem a música flamenca. Não conhecem a história do flamenco. E transmitir uma cultura desse porte pede grande responsabilidade. Não podemos ser meros repetidores de enunciados. Temos que ir fundo. Precisamos de muito oxigênio para mergulhar e muita ética para assumir verdadeiramente o papel de professor. Formamos profissionais que vão reproduzir o que lhes foi ensinado e esse conhecimento se tornará uma verdade, ou verdades que sairão de nossas bocas e se espalharão mundo afora. Detemos o poder de facilitar a formação de maestros e maestras, bailaores e bailaoras. Ou de semear a desinformação em detrimento da arte flamenca!
Os bailaores de flamenco são instrumentos de percussão vivos. Todo estilo musical evolui, não é estático. Quem escutou um spiritual pela primeira vez, jamais vislumbraria que ele evoluiria para um rap dos guetos nova iorquinos. Assim, o sapateado tornou-se um show de sequências, de fraseados, efeitos, matizes, algumas vezes muito barulhentos, aleatórios, súbitos, sem nexo. Impossível frear a evolução de uma forma, um estilo musical tão marcante, pulsante, que desde sua raiz imprime apelo tão dramático. Contudo, hoje, no baile, não se vê respiros ( não me refiro a respiros coreográficos). Respiros nas mensagens e histórias que as coreografias pretendem contar. Muitas vezes a coreografia não tem ligação alguma com a música, com o palo, com a letra. Quando bailamos, tocamos e cantamos, pretendemos contar uma história juntos. Isso pede cumplicidade, afinidade, afinação e compromisso. Precisaríamos de um respiro também em nossos caminhos, mais intercâmbio, aprofundamento, partilha, ideologia, antropologia. Mais yoga!
Sempre que adentramos um novo patamar, um campo sagrado, uma casa onde se preservam tradições e onde a história foi escrita através dos séculos com perseguição, escravidão, angústia, martírio, creio fortemente que devemos reverenciar tal universo. Como sinal de respeito, devoção, gratidão pela concessão de alguns direitos. Não podemos invadir tal terreno e nos apossar de seus tesouros para depois comercializá-los como se fossem nossos. A história nos cobrará, certamente. Apropriação cultural é assunto muito sério.
Notem que não tenho a pretensão de afirmar coisa alguma. São conjecturas, meditações, questões que considero importantíssimas. Estou propondo uma reflexão vital para toda a comunidade profissional, para tecermos juntos uma nova forma de mesclar cantes y bailes. Talvez o caminho natural e equilibrado fosse o baile assumir sua contemporaneidade, seu virtuosismo e sua (r)evolução estética e desvincular-se das propostas de inserir cantes flamencos, tradicionais ou não, à tais coreografias.
Delicado terreno esse que estou pisando, ainda que esteja apenas propondo reflexões, pois correrei o risco de ser vista como pedante, arrogante, inflexível. E aí estaria me auto promovendo e me concedendo aquele velho status, nas alturas de meu ego, de classificar: “isso é flamenco”; “aquilo não é flamenco”.
Não há como controlar o que cada um irá fazer com o que aprendeu, ou não. No entanto, é mister propormos esse debate e, consequentemente, uma renovação, e por que não uma revolução, em nossa metodologia.
Tenho fé de que encontraremos um caminho salutar para todos, flamencos do mundão, profissionais, e incentivar o estudo aprofundado. Uma viagem fantástica, prazerosa e iluminada, além de ser uma prática que só trará riquezas a todos.
Gostaria de finalizar o meu texto com um “tenho dito”, mas como sou flamencona, deixo vocês com um “Siete, ocho, nueve, diez… Ayyyyyyyyyyy …. Yunque clavo y alcayataaaa, yunque clavooooo y alcayaaataaaaaaa!…”