Sabe aquelas roupas e acessórios de flamenco arrecadados pela Feira Flamenca? Muitos desses materiais foram parar lá no norte da ilha de Florianópolis onde estão sendo usados por dezenas de jovens em suas primeiras lições de dança flamenca. As aulas fazem parte do projeto ASAS – Associação Ações Sociais Amigos Solidários -, uma organização não-governamental que oferece atividades e oficinas para jovens, em sua maioria em situação de vulnerabilidade social. A proposta do projeto é oferecer atividades que complementem a formação de crianças e adolescentes promovendo a cultura e a socialização e a professora de flamenco Marilia Cartel, tem mostrado que o flamenco se encaixa perfeitamente nessa proposta. Ela nos contou que suas aulas de flamenco, além de promoverem atividades físicas, estão estimulando o respeito à diversidade e o reconhecimento do outro. Em entrevista ao Flamenco Brasil ela fala sobre a rotina e os desafios do projeto.
Quantas crianças e adolescentes são atendidos com aulas de flamenco?
Hoje, atendemos 30 alunos no período matutino e 30, no vespertino.
Quais os resultados você tem notado com os alunos de flamenco?
Lidamos com indivíduos que, infelizmente, possuem pouco acesso a cultura de uma maneira geral. Muitos não possuem qualquer experiência relacionada a dança, alguns estão carregados de preconceitos. Praticamente todos nunca haviam ouvido falar em flamenco nem sequer visto algo do gênero. Então, é um tremendo desafio. Mas na medida que vamos trabalhando, mostrando vídeos (aliás, esta geração adora vídeos!), trazendo elementos para a aula (sapatos, saias, castanholas, leques) eles vão se interessando, tanto meninas quanto meninos. E aos poucos vão abrindo a cabeça e se entregando ao trabalho, permitindo-se desenvolver. E isso é muito lindo de se ver! Aconteceu certa vez com dois meninos em dois grupos distintos, por exemplo, que por não termos botas de flamenco para os meninos (temos apenas sapatos para as meninas) colocaram os sapatos de meninas para fazerem a aula. E alguns colegas começaram a rir e a debochar destes meninos. Então, neste momento consegui trabalhar uma série de aspectos com o grupo, como respeito, empatia e mostrar para eles que a vontade de fazer a aula era tão grande que eles superaram a falta de material e seus próprios preconceitos, buscaram uma alternativa, foram pró-ativos e que isso tem muito valor.
Que tipo de atividades vocês fazem nas aulas?
A rotina de aula é similar a qualquer outra aula de dança flamenca. A cada encontro, preparamos o corpo para a atividade com alongamento e aquecimento; depois trabalhamos a parte rítmica com palmas e alguns sapateados, já dentro do palo adotado; realizamos movimentos de braços e mãos; e depois montamos pequenas sequências coreográficas que aos poucos vão se tornando um baile. Também assistimos vídeos para aproximar os alunos desta arte, sempre que possível. As aulas são realizadas com acompanhamento de música gravada. Infelizmente, aqui em Florianópolis temos escassez de músicos de flamenco. Mas não perco as esperanças de conseguir levar algum músico para o projeto, nem que seja periodicamente, para enriquecer ainda mais a vivência desta garotada com o flamenco.
Quais vídeos foram vistos em aula?
Não temos acesso a internet. Então, quando possível, mostro alguns videos no meu celular de trechos de bailes, enfocando mais nos masculinos, já que os meninos são os que, ao meu ver, mais precisam de incentivo.
Quais foram as reações dos alunos ao verem vídeos?
O objetivo é ilustrar o que falo nas aulas, quanto a postura, atitude. Alguns ficam impressionados, outros dão risadas. Enfim, aos poucos vamos os aproximando e os sensibilizando para esta arte.
Que ideias eles tinham do flamenco ou da dança antes de começar a estudar flamenco?
De flamenco a grande maioria não tinha ideia alguma, nem sabiam que existia. De dança em geral, eles tem na cabeça alguns esteriótipos e preconceitos que aos poucos vamos derrubando, como por exemplo, a dança ser apenas para meninas ou que dança é só ballet e funk.
Já foram realizadas apresentações com os alunos?
Sim. No final do ano passado, apresentamos nosso trabalho na Conferência Regional da Criança e do Adolescente, realizada aqui em Florianópolis, onde são discutidas políticas públicas voltadas para esta população. Foi um momento muito emocionante, pois após várias semanas de ensaio, os aplausos que nossos alunos receberam os mostraram o quanto todo o esforço e dedicação valeram a pena. Para estes jovens é muito importante que se sintam valorizados, que pertençam a um grupo que realiza coisas boas, saudáveis! E, para mim, ver que tudo isso é possível através do flamenco, é maravilhoso!
Além das doações da Feira Flamenca, de onde vem o material utilizado nas aulas?
Ao iniciar o projeto, publiquei nas redes sociais que necessitava de doações de artigos flamencos para realização das aulas. Tive um ótimo retorno. Além do que foi arrecadado na Feira Flamenca, ex-alunos meus de São Paulo me enviaram material e pessoas aqui de Florianópolis também me procuraram com doações de sapatos, saias e adereços flamencos.
Tem mais alguma outra situação interessante que aconteceu durante o projeto que você gostaria de compartilhar?
São muitas situações, como disse, e muitos desafios também. Muitas vezes vi alguns de nossos alunos fazendo na rua ou na escola os passos de flamenco que estudamos na oficina, ou mostrando a outros colegas que não participam do projeto. Isso é muito legal, pois mostra como eles se apropriaram do flamenco. Outra situação que eu sempre relato é quando estávamos fazendo um exercício de contratempo, onde eles ficavam em fila indiana em um extremo da sala e eu em outro extremo e cada um, individualmente, se deslocava em minha direção fazendo palma no tempo e pés no contratempo. Quando chegavam até mim, eu fazia uma “farrinha” com esta criança (um abraço ou uma beijoca). Até que comecei a perceber que era isso que eles mais esperavam: o momento de receber este afago, este afeto. Uma das crianças, por exemplo, nem chegou na metade do trajeto e já saiu correndo em minha direção para receber seu merecido abraço! Foi muito emocionante!