A trajetória de Renata Nuñes

edição Alejandra Osses

“ Sinto saudades daquele sonho que eu tinha quando comecei a dançar flamenco. Eu me casei com ele, mas agora estou em outro momento. O flamenco é apenas uma fatia da minha vida”

Fotos: Mateus Lima

Ela me recebeu de forma muito organizada. Como foi assessora de imprensa em uma grande empresa de comunicação em São Paulo, preparou e me mostrou o seu próprio clipping, isto é, uma pasta com todas as matérias e fotos que saíram a seu respeito por onde passou. Sente muito orgulho: “nossa, como fui corajosa”, reflete.

Renata Nunes não é uma artista que vive apenas das emoções. Muito pelo contrário, possui um lado intelectual forte e com muito conteúdo. A dança é para ela uma forma de expressar o seu raciocínio rápido e o seu corpo é o instrumento dos seus pensamentos. Seu repertório não se resume às aulas de flamenco com grandes nomes na Espanha, passa também por suas vivências. São muitas histórias e é assim que ela se apresenta ao Flamenco Brasil.

Sua jornada começa com um ensinamento marcante do seu pai: “Você pode ter e perder um carro, um relógio, mas seu conhecimento nunca ninguém vai conseguir te tirar, será sempre seu”. Foi com esse pensamento que ela decidiu morar na Espanha aos 24 anos, pronta para viver o que a vida fosse lhe oferecer. “Deixei minha insegurança de lado e fui”, conta. Para uns, foi considerada “louca”, para outros, corajosa. Poucas, mas valiosas pessoas a incentivaram. (Jean) Cocteau, pensador e cineasta francês (1889-1963), diria: “sem saber que era impossível foi lá e fez”.

“A minha história com o flamenco não foi amor à primeira vista”

Renata começou a trabalhar precocemente aos 16 anos para ter sua independência. Na época, não tinha a possibilidade de se dedicar apenas à dança. Descobriu o flamenco no trabalho, quando sua chefe contou que estava fazendo um curso e apaixonou-se pela dança. Curiosa, esperou suas férias chegarem para participar de seu primeiro workshop e conhecer tal dança de perto.

Mas um documentário mudaria a sua vida. Tratava-se da história de Martha Graham, coreógrafa, professora e bailarina americana, que revolucionou a dança moderna e se profissionalizou aos 22 anos. “Ela começou a dançar com 16 anos e se profissionalizou aos 22, a mesma idade que eu tinha na época que assisti o vídeo. Fique muito emocionada, conversei com a minha mãe, quem me aconselhou a seguir o meu coração e dedicar a minha vida à dança”, relembra.“Quando olho para mim, sinto orgulho. Lembro de cada passo que dei no meu caminho. Fui para a Espanha de um jeito e voltei outra”

Com apenas um ano de flamenco, Renata decidiu ir para a Espanha estudar durante três meses. Estava trabalhando em uma agência de comunicação, ofereceram um cargo melhor, mas ela recusou. “Fechei tudo e contei para as pessoas próximas, algumas achavam que eu estava iludida e que não iria conseguir acompanhar as aulas porque o nível era muito alto e era cedo para ir. Estava insegura, mas eu queria ver o que era e chegar à raiz do flamenco”, conta.

Naquela época, o acesso aos bons materiais de flamenco era restrito e por isso existia muito deslumbramento e fascinação com tudo o que vinha de fora. Hoje, com a internet tornou-se tudo mais fácil. ”O desejo de ir para lá estudar era uma grande sorte ou um grande privilégio”, afirma.

Em São Paulo, Renata ouviu da maestra La China: “Você sonha em estudar flamenco na Espanha? Não tem que ser sonho. Venha e faça aula comigo, estou abrindo uma turma com um nível um pouco mais básico”. Foi o que a impulsionou.

A bailaora compara o flamenco com um namoro, que, conhecendo aos poucos, de repente, a relação pega fogo. “Não foi amor à primeira vista. Conheci, teve a fase da conquista, namorei e aí me apaixonei! O que eu mais ouvi foi que estava muito velha para ser bailarina. Comecei a dançar flamenco aos 23 anos, muito tarde para alguns”.

“Só queria dançar e ser feliz”

Quando chegou à Espanha, ela não tinha idéia do que a esperava. Não sabia nada sobre o país e nem mesmo sobre Madri. Conhecia poucas pessoas. Tinha apenas quatro dias reservados em uma pousada, o endereço de uma amiga e da escola Amor de Dios. Mesmo com muitos questionamentos, sempre contou com o incentivo de pessoas que passaram por sua vida. Um forte incentivo foi da professora Rafaela Carrasco: “continua, não desiste, você é muito trabalhadora”. Já do professor Ciro, ouviu emocionada o conselho “Confia!”.

Foram três meses de imersão. Estudava quatro horas por dia. Aproveitou também para fazer uma viagem com sua irmã pela Andaluzia. Foram dez dias conhecendo cidades como Córdoba, Sevilha, Huelva e Granada. Foi lá, no castelo de Alhambra, que teve a sensação de já ter vivido lá. “Foi um momento mágico”, lembra.

“Quando olho para mim, sinto orgulho. Lembro de cada passo que dei no meu caminho. Fui para a Espanha de um jeito e voltei outra”

Foto: Susan Agueda

Após essa curta e forte experiência, Renata voltou ao Brasil e decidiu morar na Inglaterra com sua irmã. Estudava inglês de dia e nas horas vagas trabalhava como garçonete, pois seu objetivo era guardar dinheiro e voltar para a Espanha para concluir seu sonho.

Na pequena Ilha de Wight, entre França e Inglaterra, Renata começou a buscar academias de dança nas páginas amarelas e percebeu que não existia flamenco. Ligou para a prefeitura procurando um espaço para estudar e indicaram um centro cultural. Lá, pediram para que organizasse um workshop de flamenco. Ela só poderia ensinar sevilhanas, o pouco que sabia.

Mas o workshop foi um sucesso. Participaram 26 mulheres com cerca de 40 anos de idade. “De repente, eu as vi dançando sevilhanas e foi lindo. Saí em três matérias no jornal da cidade e isso me deu a oportunidade de começar a dar aulas nos bairros por meio da prefeitura e nas escolas de ballet. Eles me pagavam bem, mas o que me sustentava era o meu trabalho como garçonete. Tudo aconteceu muito rápido”, relembra.

Para Renata, uma das maiores experiências de ter vivido na Europa e ter começado sua carreira por lá, foi não ter o peso e o julgamento dos conhecidos. Ela podia ser quem queria ser. E isso lhe deu força para se estruturar como profissional e se tornar uma artista. “Eu não estava nem aí com o que os outros pensavam, não conhecia ninguém, só queria dançar e ser feliz”.

Voltou, então, para a Espanha com apenas 1800 euros. Trabalhava em um bar até as cinco da manhã e com esse dinheiro só conseguia pagar sua moradia e suas aulas. Viveu durante um ano dessa forma, até surgir uma oportunidade de fazer uma audição para o Parque Espanha no Japão. “Estava com medo, porque era muito crua, mas a Milene (Muñoz) me disse: não importa, vamos para ganhar experiência em audição.”

“Sou intensa, tenho disciplina exagerada…”

Renata teve sorte, foi escolhida. Quando contou para sua maestra Rafaela Carrasco escutou: “Não importa que não seja um espetáculo muito flamenco. Você vai ver como vai voltar”.

“Morei no Japão um ano e 15 dias, e era quem tinha menos experiência. As profissionais do grupo começaram a dançar com seis anos de idade. Tudo para mim era muito difícil, chorava para aprender, enquanto as outras pegavam as coreografias com mais facilidade. Cresci muito como bailaora”, conta.

No Parque Espanha, ela aprendeu a ser uma bailarina consciente. Estudava todos os dias. Fazia aula de barra, ensaiava e ia para o palco. “Eu não sabia nem como fazer um coque no cabelo ou a minha própria maquiagem. Foi ali onde realmente aprendi a tocar castanholas, foi uma escola. Havia muita troca, ensinávamos passos de aquecimento umas para as outras e ali percebi como aquelas bailarinas eram completas. Além de dançar também atuavam e sabiam como se portar no palco. Tinham muito profissionalismo, aprendi também a ser mais responsável e a ter disciplina”, conta.

Após sua experiência no Japão, Renata voltou para a Espanha. Estudou clássico espanhol, ballet, ia para o Centro de Documentação de dança de Madri e freqüentava muitas bibliotecas para entender profundamente a história do flamenco.

Renata tinha uma vida difícil, recebia pouca remuneração, já tinha trabalhado como garçonete, operadora de telemarketing e faxineira e o nível de exigência de flamenco na Espanha era enorme. “Tinha sempre que correr atrás. Como eu sou intensa, nunca faltei às aulas, tenho disciplina exagerada, lesionei o meu pé e nunca melhorava por causa dos seus treinos intensivos”, conta.

Renata teve a sorte de ganhar uma bolsa de estudos da bailaora Imaculada Ortega, “Não tinha dinheiro e quando recebi esse presente chorei e abracei-a. Tenho um carinho enorme por ela, porque viver na Espanha era tudo tão difícil e suado e a Imaculada apenas acreditou em mim. Foi mágico!”.

Com a lesão no pé, Renata precisava alterar sua rotina. Com um bom currículo que tinha, inglês fluente que aprendeu na Inglaterra, ela conseguiu um emprego em uma multinacional. Foram dois anos ganhando bem, fez boas amizades, se divertiu e, em 2008, foi convidada pela bailaora Yara Castro para fazer o seu primeiro solo. “Yara sempre me deu suporte também, sinto enorme gratidão”.

Yara Castro e Renata Nuñez

Em 2009 foi para a Turquia dar aula, tinha três meses para montar nove coreografias e fazer dois solos. Foi um desafio dar 26 horas de aulas semanais e, ainda, com uma lesão no pé. “Trabalhar num país tão diferente foi incrível, me identifiquei muito com a cultura por causa da minha ascendência árabe. Ia feliz para o trabalho e fui convidada como professora vinda da Espanha, já era um reconhecimento”, lembra.

“Dançar é a minha vida”

Depois de dez anos morando fora do Brasil, a saudade da família apertou e Renata decidiu voltar para ficar. Há dois anos vive em São Paulo, se apresenta e dá aulas, mostrando tudo o que aprendeu nos países nos quais morou.

Segundo ela, o flamenco no Brasil mudou muito. O baile está mais avançado, já que as pessoas têm viajado mais para a Espanha. “É muito bom estar de volta, mas sinto falta de bater um bom papo com as pessoas. Aqui tem uma certa barreira na comunicação por ter um “nome“ a se manter, uma postura. Quero apenas atualizar assuntos, trabalhos, trocar experiências entre os profissionais de flamenco. Na Espanha era uma troca constante, espero que essa barreira seja temporária”.

Depois de uma longa jornada, Renata quer apenas vivenciar o flamenco de uma forma muito pessoal: “Meu sonho é dançar muito, enlouquecer dançando, inspirar as pessoas que me vêem. Quero que elas saiam do meu show de um jeito diferente de quando entraram. Quero transmitir uma magia e todas as sensações que eu puder”.

A bailarina não pensa em voltar para a Espanha para morar novamente. Acredita que o mercado flamenco no Brasil vai crescer e deseja colaborar na organização da classe, como criar mais audiência, mais trabalhos e até abrir um conservatório está entre suas vontades. Uma escola com regras, disciplina e um espaço que permita a profissionalização. “Quero fazer as pessoas felizes, trazer o flamenco puro e ensinar a vivência do palco e do tablado”, afirma.

E finaliza: “a dança sempre foi o que me impulsionou a viver essa experiência. É a minha vida. Quando eu danço não questiono, não tenho crítica, não penso, apenas me entrego. Eu somente danço. Eu carrego o cheiro da cultura, olho com felicidade minha vida e isso ninguém tira de mim”.

There are 8 comments

  1. Maria celia tribst

    Parabens Renata vc prova que é uma grande guerreira, nada e ninguempoderá tirar-lhe o que vc conquistou. Continui assim e mta saúde sua aluna M. Celia

  2. Alessandra

    Precisamos traduzir esta reportagem em Ingles para compartilhar essa trajetoria com aqueles que nao falam Portugues e te acompanharam aqui do outro lado do oceano… Parabens Renata!

  3. Maria Paqlmira

    Querida Renata, adorei conhecer toda a sua história, todo esse talento,dedicação e trabalho nos diz que o que você quer para seu futuro você vai conseguir e com grande sucesso. Ainda teve tempo para ajudar pessoas e fazer um diferencial em suas vidas, minha Nena que o diga. Sucesso sempre!!!! Bj

  4. Cleide

    Olá prof, Renata, acho que você está conseguindo passar todo esse amor à dança para suas alunas, me sinto privilegiada em aprender
    um pouco dessa arte com você.
    beijos
    Cleide

  5. Carmen

    Parabéns,pela diciplina,garra,és una pessoa muito especial,por td que passastes e vencestes!!Continues tua caminhada,dando oportunidade aos que amam essa arte!!!Grande Ab.

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