“Há muito frescor no passado!”, diz La Lupi. No espetáculo “RETOrno”, apresentado em meados de maio, em São Paulo, a bailaora volta às origens do flamenco para recriar o seu presente. “Como muitos bailaores, eu questionei o flamenco clássico e corri em busca de outras modalidades de dança para mesclar. A mescla me encanta, mas senti que precisava voltar atrás para volver a bailar natural e orgânica”, diz La Lupi, com a fala rouca e rápida, enquanto separa as flores e peiñetas do figurino, no camarim. “Visitei o passado para buscar meu presente e meu futuro”, sublinha.
La Lupi – De volta para o futuro
No espetáculo, que aconteceu no Teatro Renaissance, La Lupi arrebatou o público paulistano com seu estilo performático, em um passeio por alegrias, tangos e bulerías, e uma arrebatadora homenagem a bata de cola e ao baile com sombrero Cordobês. O título do espetáculo é um jogo entre a ideia de retorno e de desafio (significado de “reto” em espanhol). O “reto”, aqui, foi a improvisação. “Improvisar é a coisa mais difícil do mundo”, diz ela. A guitarra flamenca de Curro de María, diretor musical do espetáculo e marido de La Lupi, e os cantaores argentinos Alvares Gonzalez e Maximiliano Serral, acompanharam a bailaora em momentos mágicos, como o do mantón final, ao som de “Canción de las simples cosas“, conhecida na voz de Mercedes Sosa. “Para o próximo espetáculo, quero palos mais calmos. Quero mais soleás, mais siguiriyas”, adianta La Lupi.
Caçula de sete filhos, a malagueña Susana Lupiañes Pinto, La Lupi, começou a bailar aos 3 anos, ao som dos discos do pai, aficcionado por flamenco. Aos 8, deu um baile na porta de uma escola de flamenco, ao saber que as inscrições para as aulas haviam encerrado. Chorou tanto, que o atendente, com pena, anotou seu nome a lápis, no fim da lista. A partir dali, escreveu seu nome em tintas fortes na história do flamenco contemporâneo, como uma das mais importantes bailadoras de sua geração. Trabalhou com Juan Maya “Marote” em Madri. Estudou com grandes maestros como Cristóbal Reyes, Carmela Graco, Paco Romero e Juan de Juan. Enamorou-se do estilo de Cristina Hoyos, em Bodas de Sangue. Cita como ícones Pastora Império e Carmen Amaya. Nos últimos tempos, dividiu o palco com Antonio Canales, bailou ao lado do cantaor pop Miguel Poveda e orgulha-se de compartir com a maestra Eva Yerbabuerna a mesma forma de ver e de sentir o flamenco. “Aprendo a cada segundo. Temos que ter a capacidade compartilhar e aprender, e não de copiar. Isso vale para tanto para os alunos como para os profissionais”, diz.
“O flamenco não é físico. É espiritual e musical”
La Lupi tem sua própria companhia, desde 1999, ao lado de Curro de María. Os dois se divertem ao contar como se conheceram. “Ela me consultava para tocar, mas achava que eu cobrava muito caro”, lembra Curro. “Eu dizia: ‘Quem você pensa que é? Paco de Lucía?”, devolve La Lupi (risos). O que passou é que um dia os dois se encontraram, por acaso, no palco. Em três meses, estavam morando juntos. “Casar com ele foi um plano bem mais econômico”, ela brinca. O segredo da parceria, que dura 16 anos, está, em parte, na paixão em comum. “O flamenco é minha vida”, resume La Lupi. “Para me amar é preciso amar o flamenco. Um artista flamenco passa por tantos estados anímicos… Porque bailar também envolve sofrimento físico, mental. Mas também se assemelha a plenitude do amor”, ela diz. Para Curro, que começou tocando palmas para a irmã bailar, e iniciou na guitarra incentivado pelo pai, o flamenco é sinônimo de sentimento. “Me rompe el alma!”, diz ele, dedilhando sua guitarra.
“La Lupi tem o coração maior do que o meu. Estou aprendendo sobre generosidade com ela”, diz o guitarrista, momentos antes do show, enquanto aguardava sua mulher voltar do sapateiro. O detalhe vale um parêntese: a bailaora tem 150 sapatos. Mais da metade da marca que leva seu nome. Em busca do “sapato dos sonhos”, desenhou a linha La Lupi, junto com uma fábrica de Málaga. Mas justo no dia do espetáculo, o sapato vermelho de camurça pediu conserto. Na estreia, pregos saltaram e foi preciso lixar a sola para que La Lupi pudesse taconear, “a compá”, sem susto.
Pela primeira vez no Brasil, por iniciativa das flamencas Roberta Minieri, da escola A Su Salud, e Cristina Reyes, da Danza Flamenca, em parceria com o Galpão da Dança e o Estúdio Soniquete, La Lupi se declarou impressionada com o baile dos brasileiros nos workshops que realizou, e principalmente com a cia. Miguel Alonso, que abriu seu espetáculo acompanhado por oito bailaores e bailaoras. “Eles não devem nada a gente da Espanha”, elogia.
Aos aprendizes, a maestra lembra que o flamenco começa por uma ampla formação em música e ritmo, que envolve conhecer profundamente o cante e a guitarra. “O flamenco não é físico, é espiritual e musical”, diz. Ao público do Flamenco Brasil, um recado: “Que sigam escutando muito flamenco, muito cante, muita guitarra. Que não pensem que o saber esta na coreografia, e que sigam aficionados com por esse saber que alimenta a alma e o coração”.
É quase o momento de entrar em cena. Qual será o ritual de La Lupi, antes de pisar no palco? “Sempre penso quão afortunada soy. Para que nunca me esqueça da sorte que é poder bailar”, diz. Depois de duas horas de La Lupi, com seu estilo teatral, temperamental, único, o pensamento de quem assistiu seu espetáculo naquela noite é um só: “Que sorte, nesta vida, ter visto La Lupi bailar!”.
Ouça a conversa deliciosa entre a jornalista Rosane Queiroz e La Lupi exclusivamente para o Portal Flamenco Brasil.