Yolanda Heredia sobe ancestralidade do flamenco e a vida

Peço licença a você leitor para quebrar o padrão jornalístico  e escrever a matéria em primeira pessoa encerrando o ano de 2013 , pois para mim, essa entrevista foi muito marcante. A convite da brasileira Tatiane Maccarini, Yolanda Heredia ministrou um workshop de baile na cidade de Florianópolis em dezembro quando concedeu esta entrevista para o Flamenco Brasil. O conteúdo que absorvi é algo atemporal, algo para imprimir e colar no espelho do guarda-roupas ou deixar em um lugar fácil para ler e reler. As palavras da bailaora flamenca Yolanda Heredia ensinam a dançar e honrar a vida por meio do flamenco e da reverência à sabedoria de nossos ancestrais.

De  frente para o mar ao som das ondas ela toca palmas e entoa seu cante gitano intrínseco ao sangue e talento herdado de seu pai, o cantaor Jesus Heredia. Yolanda Heredia em suas aulas enalteceu e chamou a atenção para o resgate do Sagrado Feminino, para o respeito pela ancestralidade do flamenco e para a importância de bailar de corpo e alma, ademais da técnica.

A artista ministrou aulas à todos os níveis, todavia com diversos pontos de congruência entre eles, promovendo a coesão entre os grupos, a leveza no aprender sem o julgamento recíproco, o desvínculo do ego e acolhimento no errar e no acertar. Segundo as alunas, através do verdadeiro cante gitano, do soniquete, de suas palavras e de seu baile, se absorveu partes da memória ancestral do flamenco.

“A Yolanda me trouxe uma consciência de presença; aonde começa e aonde acaba cada movimento, cada passo. Já temos muita informação na internet, nas aulas semanais aqui no Brasil, porém  ela abriu o caminho para conectar-me com a minha verdadeira essência na execução dos passos além da coreografia, a dar a intenção correta nessa arte tão sagrada. A música foi seu cante, suas palmas e o barulho do mar. Nunca mais vou esquecer o som das ondas e do fluir das águas ao bailar com bata de cola” , disse Ana Medeiros, diretora de criação do La Negra Atelier de Moda.

Yolanda Heredia e Ana Medeiros | Foto: Andressa Rocha

Yolanda Heredia e Ana Medeiros | Foto: Andressa Rocha

Muitas coisas  me chamaram a atenção como expectadora de sua aula. Realmente as alunas estavam muito unidas. Comemoravam a cada acerto, sentiam e entendiam a expressão uma das outras, dentro do erro havia a brincadeira entre elas e a boa vontade de Yolanda de repetir o que fosse necessário. Mas não era só a técnica de baile e  simplesmente finalizar mecanicamente uma coreografia.

“Yolanda ilustrou de uma forma curiosa a bata de cola. Como se a bata  fosse uma extensão de nosso corpo, um prolongamento desde coluna cervical.  Quando se dá conta dessa fusão,  através da presença e consciência corporal é  possível equilibrar os pesos com fluidez e força, suprimindo a rigidez” , comentou outra aluna.

Yolanda Heredia com as alunas do workshop | Foto: Andressa Rocha

Yolanda Heredia com as alunas do workshop | Foto: Andressa Rocha

 “Perceba suas emoções em seu caminhar, assim como na expressão de suas mãos e ao abrir seus braços e seu peito no baile. Há rigidez ou fluidez? Se observe: o corpo não mente”

O flamenco e a arte de dançar a vida

 A maestra ainda falou sobre a necessidade da “reconexão” do ser humano aos cinco elementos e mostrou que o flamenco também é terra, é água, é fogo, é ar, é espaço. E a junção e o pacto fidedigno com esses elementos,  gera a energia que move o “aire flamenco”, a verdade vital. Daí o flamenco como ferramenta para estarmos atentos a nós mesmos e honrar o “universo que nos habita”.

Deixou claro que flamenco não é um jogo de egos. É uma arte que deve ser respeitada desde as suas raízes e disseminada com verdade. Não é apenas cantar, tocar ou  executar um movimento simplesmente em si. Mas criar um diálogo entre o corpo físico, a energia vital, os sentimentos puros e arrematar com uma epístola legítima do que se quer exteriorizar.

O que ocorre muitas vezes é que a forma que nos expressamos ou nos movemos, não exterioriza verdadeiramente o que estamos sentindo. Nos movemos de acordo com que imaginamos que o outro quer ver, ou mesmo como algo que  gostaríamos que fôssemos. Há bloqueios, devaneios mentais e medos que atrapalham a expressão genuína de nosso ser.  Eu entendi através das palavras de Yolanda Heredia,  que é possível  por exemplo executar uma coreografia com uma técnica perfeita, entretanto vazia. O “aire flamenco”, essa verdade vital,  é intrínseco e deve estar presente em toda e qualquer forma de expressão dessa arte. Faz parte das raízes de sua ancestralidade e há que ser cultivado.

Naquela sala de frente para o oceano, a maestra articulou bastante sobre a água, já que é um elemento essencial na geração da vida. “Permita que as águas fluam ao longo do corpo como as ondas, absorvendo e trazendo para seus movimentos o mesmo equilíbrio entre a força e a leveza, sem a rigidez. Sinta a fluidez das águas em seu útero quando move os seus quadris, manifestando e respeitando seu Sagrado Feminino. Perceba suas emoções em seu caminhar, assim como na expressão de suas mãos e ao abrir seus braços e seu peito no baile. Há rigidez ou fluidez? Se observe: o corpo não mente”.

Encorajou as alunas a dançar e dar sentido para cada movimento, não somente no baile e no caminhar em um palco, mas que transferir essa verdade,  força e qualquer sentimento provocado ou exteriorizado pelo flamenco à jornada da vida. “Dancem a vida a partir de sua essência, de sua verdade. Não sigam os meus passos. Encontrem a sua forma própria forma de bailar. E sejam gratas eternamente a ancestralidade e sabedoria das abuelas que nos deram a oportunidade de estar aqui ”.

Yolanda transmite força, poder interior, segurança e auto-estima na forma que baila, como ensina e se relaciona. Não é algo só “da boca para fora”,  ela é em absoluto coerente ao seu próprio discurso.

 

Yolanda Heredia e o Flamenco

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Yolanda Heredia | Foto: Eduardo Vasconcellos

Como o flamenco entrou em sua vida? 
Bem, não há muito mistério. O Flamenco entrou na minha vida, como acontece em muitas famílias na Andaluzia e em outros lugares. Por meio da genética e do fato de eu ter nascido em uma família que honra e exerce essa arte.

Quais os valores intrínsecos ao flamenco para você, gitana de Sevilla que leva e dissemina essa arte em sua alma?
Para mim, o valor mais importante é sua ancestralidade e de como a verdadeira conexão com essa arte pode fortalecer a sua vida e te fazer crescer como indíviduo se estiver atento ao desdobramento infinito de emoções que o flamenco abarca em sua expressão.

Há algum fato inesquecível que marcou e influenciou sua vida na forma de aprender e ensinar?
Sim. Há sempre uma passagem marcante na vida de todo mundo que de certa forma, lhe mostra qual o caminho que deve seguir. Tive uma lesão grave  por conta de uma queda no palco enquanto dançava trajada em uma bata de cola. Depois desse fato,  meu corpo e minha alma assumiram o comando, tirando de cena meu ego e minha mente.

Sobre a forma de aprender e ensinar,  posso afirmar que embora o flamenco esteja em constante movimento, assim como a forma de expressá-lo – já que qualquer movimento social é influenciado pelo tempo e pelo Todo -, tudo o que é feito com a compreensão da profundidade desta arte e de seus pilares e a forma que ela  é difundida resulta no enriquecimento do flamenco honrando o artista, o público, o palco, o cenário. Agora, o que vai contra esse valores, não tem importância. Se dizem que é flamenco, simplesmente não é.

Esteve nesse mês no Brasil, aonde ministrou um workshop em lugar paradisíaco de frente para o mar ao som das ondas, de seu cante e de suas palmas . Qual  flamenco que foi transmitido?
Eu transmito a mesma verdade que é parte de mim: cuido para que a chama da vida esteja reluzente dentro do meu ser. Acredito que o corpo e a alma devem estar presentes e sintam verdadeiramente que são parte do baile, independente da técnica que se tenha. Expresse verdadeiramente as emoções que veem à tona e as sensações inerentes ao flamenco e transforme isso no  medidor da temperança e da liberdade que se busca. Espero que não soe muito romântico (risos). Para mim é simplesmente o mínimo que podemos fazer.

eternamente-_yolandaEm um momento de sua aula aqui no Brasil, falou sobre a reconexão com o Sagrado Femino por meio do flamenco. Qual a trajeto dessa jornada? Conte um pouco sobre o resgate da sabedoria das “abuelitas”.
A mulher capaz de gerar e ou  nutrir uma vida. A partir daí penso eu, que deve-se começar  a olhar cautelosamente  para o aprendizado e a força provindos do flamenco. Dance como sua alma e corpo pedem para mover-se, dissolvendo bloqueios, substâncias prejudiciais, o medo do julgamento e tudo que impede de bailar fervorosamente em um corpo sagrado de mulher. O flamenco em muitos de seus movimentos, alteia muitos pontos sobre a propriedade de  tal corpo. Se você não dança como sente, o flamenco te relembra como se dança com verdade.
Caso se perca desse caminho, de sua verdade e não saiba mais para onde olhar, ou aonde ir, o conhecimento das anciãs nos ajuda a lembrar e resgatar nossa essência sagrada. Sempre em minhas aulas chamo a atenção para estas questões.

Qual sua opinião sobre a relação “corpo – ser humano” em tempos de alta tecnologia?
Infelizmente é  demasiado YouTube e pouquíssima reflexão pessoal.

E como você enxerga Yolanda Heredia no meio da Arte? Quem era, quem é e qual sua missão?
Bem,  Yolanda tinha uma meta: queria ser  bailaora, não é uma mulher que dança bem ou mal. Na fase de pré-maturidade  alcancei este objetivo em minha carreira. Entretanto, meu corpo se cansou de estereótipos, de sempre fazer fazer a mesma coisa, de estar no palco quase mecanicamente e por vezes, cansado ou simplesmente sem inspiração. Hoje, estou compenetrada em atender o que me inspira, o que intuo, mesmo em meio ao cansaço ou a apatia. Ter algo a oferecer e consagrá-lo com o meu melhor.

Uma frase de Yolanda aos flamencos brasileiros.
Oxalá que tenhamos sempre a oportunidade de recordar  sincera e honestamente  do momento e o porque o flamenco nos apaixonou. E como estamos agindo e trilhando nossas vidas a partir dessa lembrança.

yolanda-3-1Yolanda Heredia além do Flamenco
“Ela veio ao Brasil honrando as nossas relações e a nossa família do Fogo Sagrado de Itzachilatlan. Agradeço a oportunidade de recebê-la aqui na ilha e poder aprender desde as raízes gitanas a essência do flamenco e ter a oportunidade de desfrutar seus ensinamentos, a força dos movimentos, respiração, intenção, feminilidade. Foi uma honra muito grande receber uma bailaora gitana com toda essa maestria”, disse Tatiane  Maccarini.

Após o workshop, a bailaora conduziu um Temazcal feminino baseado nos conceitos do Fogo Sagrado de Itzachilatlan – rede ou organização neo-xamânica da qual Yolanda Heredia também é incumbida de repassar a sabedoria da tradição,  selando  ainda mais o resgate e respeito à retidão e conhecimento das “abuelitas”.  

 Embora esse seja um site de flamenco, creio ser importante disseminar a visão holística de Yolanda e como vislumbra o flamenco e a vida, o que obviamente influencia sua forma de bailar, ensinar e se expressar como artista e mulher.

Temazcal ou Útero da Mãe Terra na língua Lakota ou ainda sauna sagrada, é uma tradição milenar usada por várias etnias ameríndias  que “recria a criação da vida” em  uma tenda escura que simboliza o útero. Através do suor provocado pelo calor de pedras incandescentes em contato com água fervida junto a ervas medicinais, a cerimônia tem o desígnio de cura, limpeza e purificação do corpo e espírito honrando a sabedoria das mulheres ancestrais e o Sagrado Feminino.

Segundo o Fogo Sagrado de Itzachilatlan, esse ritual ancestral é  uma profunda experiência de renascimento no ventre da Mãe Terra, que permite recriar as nossas impressões e projeções sobre o mundo e nos conscientiza de que somos parte da natureza e que a nossa vida tem um propósito maior do qual  devemos ser responsáveis.

Eu, não mais como repórter, tive a experiência ímpar de participar pela primeira dos rezos ao Sagrado Feminino entoados singularmente  pela gitana de Sevilha em forma de cante flamenco.

Yolanda enfatizou mais uma vez o cultivar da atenção e o saber escutar. Agradeceu ao Grande Espírito pela vida e orou por uma compreensão renovada sobre nós mesmos e  nossas relações.

Confesso que foi emocionante e senti muito tocada na pela a força dessas duas culturas. Eu comungo com as alunas e com Tatiane com relação aos ensinamentos da artista. Totalmente transformadores.

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