Entrevista com Ana Morena

Ana MorenaEla impressiona pela rapidez no sapateado, força na linguagem corporal e domínio absoluto do ritmo. Ana Morena, bailaora e coreógrafa, é também professora perfeccionista – explica nos mínimos detalhes o compasso, os giros ou a colocação dos braços. Também, pudera! Foram muitas e muitas horas de estudo para chegar à bailaora que é hoje, com uma linguagem e um estilo próprios, inconfundíveis.

Curitibana, Ana iniciou seus estudos de flamenco na cidade natal com La Morita e, como muitos fizeram na década de 1980, foi para Buenos Aires (Argentina), Madri e Sevilha (Espanha) em busca de aperfeiçoamento. Viveu em São Paulo e na grande metrópole permaneceu por mais de uma década, na qual criou sua própria companhia – Alaire – e trabalhou junto aos mais conceituados profissionais.

O Balneário de Camboriu, no sul, é o seu novo lar. Mas o flamenco não ocupa mais todas as suas atenções. A chegada de seu filho Luca mudou a sua forma de ver e sentir o flamenco – “me fez sentir o trabalho com o corpo como algo mais orgânico” – mas, sobretudo, a maneira de ver a vida – “não imaginava amar tanto aquele molequinho!”, diz.

Em Santa Catarina, Ana Morena planeja ministrar aulas para profissionais. “Através deste trabalho quero repassar minha linguagem de baile, além da técnica e, especialmente, montar coreografias”. No momento, ela dá aulas em Itajaí, na academia Mery Rosa. A partir de outubro estará em São Paulo, uma vez por mês, para criar um novo show e também dar aulas de técnica e coreografia.

Acompanhe a entrevista.

Flamenco Brasil – Ana, antes de começarmos por sua própria história, gostaria que você contasse como surgiu e se desenvolveu o flamenco no sul, particularmente em Curitiba e Florianópolis?
Ana Morena – Acredito que La Morita, com quem estudei, foi a precursora do flamenco em Curitiba. Esta bailarina argentina montou uma conhecida escola de baile. Depois disso ausentei-me, e não pude acompanhar o desenvolvimento do flamenco. Hoje sei que há muito bons bailaores em Curitiba e, inclusive, já trabalhei com alguns deles em shows, como a Miriam (Perlita del Paraguay) e a Cíntia Ruela, duas excelentes profissionais. Em Florianópolis, quem me abriu as portas foi Isabel Soares, do Tablado Flamenco. Mas, por enquanto, ainda não conheço muitos profissionais de Santa Catarina, nem pude assistir a shows – estou morando aqui há pouco tempo.

FB – Você pertence à uma geração em que era preciso ir a outros países estudar o flamenco, como Argentina e Espanha. E você foi, por longos períodos (dois anos em ambos lugares). Como foi viver em países estranhos, longe da família, correndo atrás de uma grande paixão como o flamenco?
AM – Difícil, porém recompensador. Buenos Aires é uma cidade deliciosa, mas em Madri foi mais difícil porque, apesar de ser uma cidade deslumbrante também, o nível de profissionalismo do flamenco, em uma escola como Amor de Dios, é realmente muito alto. Portanto, basicamente, só estudava – umas oito horas por dia, cinco dias por semana – para alcançar este nível. Recompensador em termos de formação porque, embora na minha geração fosse necessário sair do Brasil e hoje temos muitos profissionais que vem dar cursos aqui, a vivência do flamenco na Espanha por um longo período faz toda a diferença para um bailaor.

FB – Fazem parte do seu currículo aulas com grandes nomes, como Carmen Cortes, Manolete, La China, El Guito, Belén Fernandez, Juana Amaya, Família Farruco, entre outros. O que você guarda desses ensinamentos e o que tais maestros acrescentaram a sua vida, ou mudaram?
AM – No flamenco aprendi as coisas mais essenciais. Cada um tem realmente um estilo de dançar e pensar o flamenco. E é indispensável ter técnica suficiente para ser um bom profissional. Além disso, existem certas regras básicas de técnica e metodologia da linguagem flamenca. Elas são as bases para ser um bom profissional, mas não são ensinadas na Espanha – eles pressupõem que você já saiba. Portanto, é preciso pensar e “apreender”, indo além do que é ministrado nas aulas. O mesmo serve para a montagem de coreografias e a relação musical. Ninguém ensina, mas existe, sim, um “certo” e “errado” na hora de coreografar. Você tem que aprender com a experiência e pensar. O importante no flamenco não é só o que se faz, mas principalmente como se faz – não adianta dançar um baile dificilíssimo mas de maneira mal-feita. Tal como na vida, não existe uma verdade única para todos, mas, também, tal como na vida, muitos acham que existe e que só eles a detêm!

E a magia continua…

FB – Como surgiu o seu interesse pelo flamenco?
AM – Meu interesse pelo flamenco surgiu aos quinze anos, como uma vontade intensa de dançar e na insatisfação com a linguagem das danças vigentes. O flamenco é verdadeiramente apaixonante, pois une a técnica e a elaboração de uma linguagem artística de dança com a impulsividade, força e temperamento mais selvagem de uma linguagem étnica.

FB – Como profissional, você continua a estudar, participando de workshops internacionais com maestros como La China, Rafaela Carrasco, Pol Vaquero, Domingo Ortega, entre outros. Qual é a importância para um bailaor ou professor prosseguir com os estudos?
AM – Estudar, para um bailarino, é fundamental, senão por toda a vida, pelo menos por muitos anos. Especialmente o de flamenco, pois o flamenco está tecnicamente muito sofisticado atualmente. E é uma arte que não é nossa, portanto, a maioria dos bailarinos brasileiros – excetuando talvez filhos de bailarinos que se dedicaram à dança também -, começou tarde, ao contrário dos espanhóis. Além disto, o bailarino sempre busca a perfeição, ou um ideal seu de perfeição. Embora a perfeição não exista, a arte se dá nesta busca; não se atinge um nível esteticamente e musicalmente profissional sem estudar. É também uma maneira de se conhecer – seu corpo, sua força, seus limites.

FB – Muitos profissionais no Brasil estudaram e estudam de forma “autodidata”. Afinal, qual é o significado de ser autodidata no flamenco num pais como o nosso?
AM – Como no Brasil não convivemos com o flamenco da mesma forma que na Espanha – lá aprende-se muito vendo e ouvindo e com muitos mestres – aqui faz-se mais necessário ser autodidata no estudo. Digo no estudo, porque não acho possível ser totalmente autodidata na hora de aprender flamenco – todos nós fizemos aula com alguém. Por um lado, ser autodidata na hora de estudar te deixa mais livre para buscar um estilo próprio; por outro, exige muito mais disciplina, ou seja, acho que significa doar-se mais.

FB – Depois de tanta dedicação, a “magia” continua?
AM – Sim, porque o flamenco é mágico e isto não se explica…

Al-andalus e Alaire: fazendo história

FB – O que motivou sua saída de Curitiba para vir trabalhar com flamenco em São Paulo?
AM – Na verdade, eu pretendia voltar para a Espanha. Em férias no Brasil, viajava de Curitiba para São Paulo para ensaiar com os guitarristas. Assim conheci o Luciano de Paula (guitarrista argentino radicado hoje na Espanha), que apresentou-me ao meio flamenco. Fui convidada para trabalhar com o Al-andalus, logo em seguida para trabalhar no musical Amor Bruxo (apresentado no antigo Palace, e indicado ao prêmio Sharp), por um diretor que havia me visto dançando um solo num teatro, e resolvi ficar em São Paulo.

FB – Você fez parte do Al-andalus, do qual também participaram os guitarristas Tito Gonzáles e Luciano de Paula, os bailaores Cylla Alonso, Áquilas Mendes e Shirley Cabañas. Como foi essa fase? Em que medida esta companhia influenciou o flamenco no Brasil?
AM – Foi uma fase ótima e valeu muito! O grupo Al-andalus tinha um carisma muito especial – a idéia de trabalhar em grupo com uma visão de direção teatral. Não era teatro, era flamenco, mas com “cenas” interligadas – não era apenas uma coreografia atrás da outra, como a maioria dos espetáculos flamencos. Não ensaiávamos apenas as coreografias, mas as ligações entre as cenas. Isto muda tudo. Além disso, todos eram profissionais, e até mesmo o Luciano de Paula participava do grupo como um componente e não só como músico na hora do ensaio.

FB – Junto ao músico Beto Angerosa, você criou e dirigiu a companhia Alaire. Dessa parceria resultaram os mais belos e bem feitos trabalhos no flamenco no que tange à “fusão”. Há alguma dessas montagens que tenha um significado especial?
AM – Todo o trabalho foi muito especial, cheio de desafios musicais! Na verdade era um mesmo trabalho que foi amadurecendo. Era único, pois o Beto é um músico genial e o meu interesse por sapateado, especialmente, fez com que desenvolvêssemos uma linguagem nossa. Duas épocas se destacaram – o começo, quando o grupo era formado pelo Beto, Flávio Rodrigues e eu; e quando trabalhamos com o saxofonista Luís Cabrera, o guitarrista Rodrigo Domingos, o cantor Márcio Bonefon, a bailaora Babi e tínhamos um grupo muito bem ensaiado, com coreografias montadas com todos os músicos (época do Plaza del Tablao) e músicas próprias. É que, para isto, não basta vontade e talento – é necessário ter onde apresentar-se.

Ana Morena

“A temporada faz o artista crescer”

FB – A Cia Alaire apresentou-se em tablados em São Paulo, como Plaza del Tablao e Aman, além da casa de shows Gitana. Qual é a importância do tablado na vida de um artista flamenco?
AM – Como o flamenco é uma dança forte, de muita emoção e intensidade interpretativa, o tablado permite que o público veja de perto esta emoção – a expressão facial, o suor, a força física. Por ser menor, também, a interação entre músicos e bailarinos é maior e a proximidade do público ajuda a empolgar. Além disso, o bailarino aprende a se colocar “cara a cara” com seu público. É maravilhoso, mais intenso, mais flamenco. Além disso, a temporada é o que faz o trabalho amadurecer.

FB – O que a participação em importantes montagens teatrais em São Paulo, como Amor Bruxo e Carmen, acrescentaram à sua formação e experiência como bailaora?
AM – Como eu disse e acredito, a temporada é o que faz o artista amadurecer no palco. E, nestas montagens, também pude ver e sentir o que é participar de grandes produções.

FB – Afinal, o que vc prefere: tablado ou teatro?
AM – São coisas diferentes, que exigem habilidades diferentes. A experiência de dançar em um teatro cheio é mágica, única, mas o tablado é mais intimista. Também como espectadora, no teatro vejo melhor a plástica dos bailarinos; já no tablado sinto a emoção. Creio que me gosto mais dançando em tablado, mas, minha experiência em teatro foi especial porque todas as pessoas estão ali para realmente te ver.

“Seja você mesmo”

FB – Ana, sinta-se a vontade para responder ou não a esta pergunta: corre uma “lenda” de que você foi casada ou namorou um cigano na Espanha, e como fugiu dele, não pode mais voltar para lá. É lenda ou fato?
AM – Sério???!!! Rsrsrs… lenda!!

FB – Agora, um “vapt-vupt” para terminar:
Madri ou Sevilla? Sevilla.
Lunares ou Flores? Os dois.
Santa Catarina ou São Paulo? Santa Catarina para viver, São Paulo para flamenco.
Antonio Canales ou Israel Galván? Antonio Canales, sempre.
Ser flamenca é: ….O rito da verdade/ na hora do baile/ o sangue na boca/ a vida na carne.
Uma frase, um ditado, um pensamento, um sonho que oriente a sua vida:
“A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.” S.Freud.
Ou, como disse Le Guen: “Seja você mesmo. Não tenha um mestre!”

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