Entrevista com Déborah Nefussi

Pepe de Córdoba a considera a grande “Dama do Flamenco”. Quem já a viu bailar, seja no teatro ou nos tablados, entende o porquê desse título. Quem estuda flamenco no Espaço Raies Dança Teatro, em São Paulo, e a tem como professora, a chama de “maestra”. Para as meninas do Almoraima, grupo amador que está sob sua direção, ela é “Déh”; para os amigos, “Debby”.

Não importa o número de títulos ou apelidos, uma coisa é certa: Déborah Nefussi tem apenas uma cara, leva o flamenco no coração e no dia a dia. Leonina, mãe, diretora, empresária, produtora e bailaora – mesmo após vinte anos dedicados ao flamenco, ela ainda sonha e é idealista.

Dias antes da Feira Flamenca acontecer no Clube Paineiras do Morumby, nos dias 9 e 10 de maio, Déborah recebeu a reportagem do Flamenco Brasil na nova sede do Raies, na Vila Madalena, para uma conversa franca e sincera sobre o seu trabalho e sua visão sobre o flamenco feito hoje em São Paulo. Acompanhe os principais trechos desta entrevista.

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Sobre Grupos, Profissionais e Amadores

Deborah em 2007 :: Foto por Patricia OssesFlamenco Brasil: Como você vê a atual situação dos grupos em São Paulo?
Déborah Nefussi: Quase não existem mais grupos profissionais em São Paulo. O que há são grupos amadores, sob uma bandeira profissional. Em 2008, quando a Talegona veio a São Paulo e aconteceu aquela palestra no Reserva Cultural, entramos um pouco na discussão da nossa realidade, mas muito pouco. Antes, os grupos tinham muito mais força – existiam o Laurita Castro, o Tarantos, o Raies, o Triana, e todos vestiam a camisa. Havia muito mais uma vontade flamenca, sem se pensar tanto em dinheiro. Por um lado, era menos profissional, mas, por outro, tinha muito mais vontade. Hoje, cada um fica no seu canto. É bom quando o Triana ou a Ana Guerrero trazem um profissional de fora, porque vamos, fazemos o curso e pegamos a coreografia. Depois, cada um faz com aquilo o que bem entende – nem vou entrar nessa discussão. Não existe uma troca de figurinha entre as pessoas. A gente não se une, é cada um por si. Esse separatismo herdamos do flamenco da Espanha, essa falta de visão do todo da arte.

FB: Você tem vontade de retomar o grupo?
DN: Como era antes, não. Não sei como seria o perfil atual do grupo. Antes, o Raies tinha 10 mulheres super unidas, que dançavam muito bem e ninguém ganhava para ensaiar. Ensaiávamos, e ponto final. Agora posso chamar qualquer profissional que vai me perguntar: quanto vou receber para dançar no seu grupo? Quais os shows que você agendou? E eles não estão errados, estão certos – eu também faria a mesma coisa. No ano passado, por exemplo, fiz um projeto com a Cuadra Flamenca durante o ano inteiro. Eu tinha cachê, não cobrava para ensaiar, mas tinha um retorno. Hoje, tudo passa pelo lado financeiro.

FB: Os grupos amadores vivem hoje o que os profissionais viviam antes?

DN: Não. Os grupos amadores vivem uma ilusão muito grande. Eu tento ao máximo colocar o meu grupo amador com os pés no chão. Já houve discussões do tipo: quanto vamos ganhar para fazer esse show? Porque elas se espelham em nós, que ganhamos quando dançamos. Mas eu fiquei seis, sete anos no (grupo) Laurita Castro ganhando 50 reais, e quando ganhava. Nunca reclamei, porque eu sabia que tinha muita coisa para fazer e aprender. Hoje, os amadores pulam essa etapa – são outros os valores. Quando havia uma fita K7, por exemplo, todo mundo brigava por essa fita. Temos a internet, e muitos nem entram para ler um texto sobre flamenco. Isso não quer dizer que antes era melhor, e hoje pior. Simplesmente era diferente. Hoje é preciso ter o dobro de cuidado, de critério, de ética.
Por isso faço questão que todos saibam o que aconteceu antes, para dar valor ao agora. A minha geração foi a única que teve essa possibilidade, saber quem é Pepe de Córdoba, Ana Esmeralda, Laurita Castro, Carmem de Ronda, Mário Vargas. De onde eles vieram, o que passaram para nós, o que vimos quando chegamos na Espanha e o que vamos fazer daqui para frente. Em grande parte, a culpa é nossa, por não termos aberto os olhos dessa galera nova. Mas não dá controlar tudo, porque cada cabeça é uma sentença. Ser profissional ou não no Brasil é uma questão muito complicada. Não se trata apenas de sapatear bem – é questão de experiência, e isso conta no palco.

 

Sobre Cursos Internacionais e Mercado


FB: Existe uma limitação na proposta dos cursos internacionais, cuja finalidade é, basicamente, decorar uma coreografia?
DN: Eu me lembro quando a China veio a primeira vez – fazíamos o curso, mas não saíamos por aí dançando uma semana depois. Não sei se era mais difícil para nós na época, mas levávamos tempo para estudar esse material. Não dançávamos toda a coreografia, pegávamos pedaços e adaptávamos. Hoje, não, é ipsis litiris. Não estou criticando, porque eu também faço isso. Mas não paramos para montar algo nosso. Talvez o motivo disso acontecer com maior freqüência seja porque agora tem mais cursos. Só neste semestre aconteceram cinco cursos – Inmaculada Ortega, Pol Vaquero, La China, La Talegona e Rafaela Carrasco* (*nota da redação: acontecerá em junho).

FB: Quando esse número de cursos internacionais não acontecia nem em cinco anos…
DN: Tem muito material! Eu me pergunto porque existe tanto medo de pegar o fundamental que esse profissional está dando, e pensar, por exemplo, na estrutura do baile, no recorte da letra. Por que não, depois, criar a sua? É que a gente pensa, se o fulano fez, tudo o que eu fizer será pior do que ele faz. Preferimos, então, interpretar o que é dado e, depois, passamos isso aos alunos. É uma pena, porque não vejo mais coreografias nossas.

FB: A maneira como o mercado está se abrindo ao profissional de flamenco aqui é similar ao que acontece na Espanha?
DN: O que vejo que acontece na Espanha é que o mercado está super saturado – por isso está havendo cinco cursos num semestre aqui, e devem estar acontecendo 25 na Argentina e 45 nos Estados Unidos. Estão todos saindo de lá, porque tem muita gente dando aula. Nos anos 90, o que acontecia era que havia os top de linha, que eram os mais antigos, na escola Amor de Dios. Não se abria sala para mais ninguém dar aula lá. Eu sei disso porque estive lá quando os novos começaram a aparecer. Quando se abriu uma sala para Rafaela Carrasco dar aula – eu estava na Amor de Dios no dia em que ela começou – foi um escândalo. Ela trazia muitos alunos, e os mais velhos ficavam acabados.Veio a nova geração e, mesmo assim, os antigos não pararam de dar aula. O mercado lotou, e começaram a sair (da Espanha) para poder trabalhar. Aqui, o que acontece é que, em pouco tempo, qualquer pessoa dá aula em qualquer escola ou academia. O mercado no Brasil se abriu desta forma.

Formação de bailaores no Brasil


FB: Entramos na questão da formação de quem dança flamenco no Brasil. Lembro-me quando o Raies ofereceu cursos profissionalizantes. Deram certo?

DN: Planejei um curso para professores porque acreditava que poderia falar para pessoas que quisessem dar aula, e indicar os caminhos que poderiam seguir. Esse curso durou dois meses, participaram cinco pessoas, num total de oito aulas. Mas em uma escola como o Raies, por exemplo, 90% das pessoas faz aula para se divertir, mesmo levando a sério. Outros 10%, ou menos, seguirão profissionalmente. Estão todos na mesma sala, e eu achava que tinham que estudar separadamente. Exigia e colocava expectativa em cima de todos os alunos, sem distinção. Então, pensei: tenho que exigir mais daquele que vai ser profissional, que precisará dar prova, pesquisar, apresentar trabalhos. Nesse outro curso, todos faziam a mesma aula, mas os critérios de avaliação eram diferentes. Tentei criar esse curso profissionalizante, mas não deu certo.
É preciso tempo para saber o que se quer com o flamenco. Antes pensava que não – mas não funciona assim. Hoje, só tenho essa preocupação quando o aluno chega ao avançado e sei que ele vai querer entrar no mercado. Aí entro o máximo que posso, porque já passei por isso. Várias pessoas já acertaram muito e continuam fazendo o seu trabalho. Ninguém tem que ficar agarrado na barra da saia do Raies. Cada um tem que ter caminhos próprios. Eu não fiquei no Laurita (Castro) e, durante muito tempo, ela foi minha mestra. Aprendi o que tinha que aprender com ela, saí e fui fazer outro trabalho. Todo mundo tem que fazer isso, mas com critério. E sabem que aqui tem uma porta aberta.

FB: É importante cursar uma universidade de dança?
DN: É fundamental! Não existe no flamenco uma visão sobre o que é ser artista. Se eu não sou um diretor de teatro, um iluminador, vou procurar um profissional para trabalhar comigo. É difícil uma única pessoa pensar um espetáculo inteiro, sempre vai escapar algo, sempre há para trocar com o outro. Ao se montar um espetáculo é preciso pensar nele como um todo, e não apenas em uma coreografia. É preciso saber o mínimo de cada área e aqui uma das possibilidades é aprender na prática, porque sem patrocínio não é possível pagar uma equipe técnica que faça por nós. A gente faz e acaba aprendendo. Mas existe a possibilidade de estudar e se formar em uma universidade, aonde não vai se aprender flamenco, mas arte – e o bailarino de flamenco é um artista. Se não pensar como artista, estará sempre no seu pequeno mundo. É importante também o contato com outros profissionais e professores que estão nesse ambiente, além do contato com outras linguagens corporais, visuais, cênicas. A formação universitária é fundamental, assim como qualquer curso técnico.
Eu tive a sorte de ter participado do Projeto Dança, um curso técnico que durou um ano, em que tínhamos tudo isso, claro, com conteúdo bem menor. Foi depois desse curso que a minha cabeça se abriu. Até hoje mantenho uma parceria com a Daniela (Nefussi), que é atriz, diretora cênica, é formada e posso dizer que tenho muito medo que essa parceria termine. Porque eu sei da capacidade que não tenho. Foram pouquíssimos os espetáculos criados pelo Raies que eu pensei sozinha. Todos os melhores foram com ela.

FB: Existe preconceito do bailarino de flamenco em relação ao teatro, a interpretar?
DN: O bailarino, em primeiro lugar, interpreta. Vejo que o bailarino de flamenco está atrasadíssimo em relação à arte. Na Espanha, pouquíssimas pessoas montam espetáculos. Os demais dançam bem e fazem show de tablado. Não sou ninguém para falar, não tenho o mesmo nível deles, mas sou espectador. Vi muitos espetáculos na Espanha e continuo vendo na internet. Posso contar nos dedos as montagens a que assisti e que tinham uma proposta. Javier Latorre, Antonio Canales, Israel Galvan, são diretores preocupados com o todo. Na hora em que se vai para o teatro, coloca-se o espectador para assistir a um espetáculo, não ao que seria feito num tablado. Se isso acontece lá, imagina se não acontece aqui.
Na minha visão e no que acredito, não existe dança sem teatro. Um exemplo que considero o máximo, é o espetáculo Torero, de Antonio Canales, uma referência mais antiga. Tem outro mais recente, Rinconete e Cortadillo, de Javier Latorre, que tem uma proposta visual, cênica, de personagens, tudo. É nisso que eu acredito e considero que seria o top de linha de um trabalho.

Sobre Trabalhos e Projetos

Deborah no espetáculo Rosas de Fábio Rodrigues

Espetáculo Rosas :: Foto por Patrícia Osses

FB: Considero o Flamencas – Uma história de mulheres (1996, espetáculo criado pelo Raies Dança Teatro) um trabalho pioneiro no Brasil, enquanto espetáculo e produção. Há outro espetáculo que você tenha assistido ou participado que possa ser considerado uma referência?
DN: O Flamencas deu muito certo porque cada um fazia o que sabia. Existia um projeto da Daniela Nefussi, diretora cênica, outro meu, coreográfico, e um projeto musical do Carlinhos Antunes. Cada um na sua área, e todos trocando figurinhas. É diferente quando o coreógrafo chega com um trabalho pronto e pede para o músico inserir a música na coreografia. Flamencas foi além da beleza estética – falava sobre a mulher que espera, a mulher que trabalha, a mulher que chora. Foi fundo numa proposta cênica, pois tinha uma direção para isso. Outro trabalho que fiz, tão legal quanto, mas em outra proporção porque não foi para o teatro, foi sobre o Garcia Lorca, chamado Canções do Amargo. Esse projeto era do Roberto Perez, diretor de dança, e tinha também uma proposta cênica. O Raies se uniu a ele, junto com o Marcos Lobo, diretor de teatro, e resultou em um trabalho menos coreográfico, mas muito cênico, apresentado e desenvolvido na sede do Raies. Essa era uma proposta de dança teatro e foi o momento em que o Raies mais entrou nessa área. Foi um processo difícil, mas o trabalho, para mim, como experiência, foi excelente.

FB: Fale um pouco sobre a Feira Flamenca, quais são as expectativas, os motivos que levaram a criar esse evento…
DN: A Feira Flamenca é um projeto que estava engavetado. É uma nova versão do Encontro dos Amantes da Arte Flamenca, que teve três edições e era uma proposta engajada. Esta feira está sendo viabilizada pela Kabal Produções, da qual fazem parte a Simone Gambirazio, Carol da Mata, Ana Paula Campoy e eu. Também temos todos o apoio do Clube Paineiras do Morumby. Nosso objetivo não é comercial – claro que queremos ganhar, mas tudo tem limite. Queremos priorizar algumas coisas pela qualidade. As oficinas, por exemplo, têm vagas limitadas – não vamos colocar mais gente do que a capacidade da sala. Mas, além das aulas, considero as mesas redondas como os acontecimentos mais interessantes do evento. Estamos apostando muito que a Feira dê certo.

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